quarta-feira, 4 de abril de 2012

[ bailarina de circo ]

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lembrei de uma bailarina. história que passou por mim, sorrateira. nasceu no circo, Anabele. vida era sinônimo de circo. não conheceu outras alegrias, só a da fantasia diária. acordava entre tules, meias tipo arrastão, sapatilhas que um dia tiveram brilho de cetim. ofício passado de mãe pra filha, hoje registrado na última foto amarelecida, torta, posta contra o espelho. sua mãe, Anaelis, poderia atravessar aquela barreira de espaço e tempo a qualquer hora: fugira anos atrás por motivos desconhecidos. no presente, quando tudo ia bem, o trabalho acompanhava a mudança: cidade a cidade (as vezes repetidas), animais alimentados, pagamento minguado, mas em dia. poucas novidades, apesar da aparente impressão de que a cada nova paragem algo inusitado poderia surpreender a todos. Anabele sempre confiava: algum dia poderia ser surpreendida. aos quase 20 anos a tristeza foi a causa da quebra de rotina não só em sua vida. encontraram dois cavalos e o único leão do circo brutalmente mortos, àquela manhã. notícias assim correm rápido: da boca aos ouvidos e destes para o jornal e rádios da região. sem esclarecimentos, o público minguava a cada tentativa de espetáculo. alvo de um afã de loucura, Anabele foi convocada para ser a atração principal das próximas noites: corda bamba sem redes... nunca um número daqueles foi sequer cogitado. passou a tarde trancada, apenas com a pequena janela aberta. cortina se balançava ao passar da brisa. uma borboleta furta-cor arriscou um pouso em meio ao balanço do paninho trêmulo. em plena vertical alçou voo para a árvore em frente. escalou folhas, galhos e enfrentou outros ventos. de volta à janela, Anabele acompanhou de perto o matiz daquelas asas e não se surpreendeu com novo voo, não antes de um instante de encantamento mútuo. por um momento, esqueceu o desafio quase mortal que a aguardava. vestiu-se para uma ocasião especial como nunca ocorrera. os companheiros de circo notaram os detalhes não costumeiros que Anabele adicionara ao seu traje. a bailarina se dirigiu para o mastro e venceu a distância até o topo sem demonstrar o que se passava em seu íntimo. cumpriu todos os chamados do mestre de cerimônia, o dono do circo, em função de chamar a atenção do pequeno público que ali se encontrava para ver a façanha de Anabele, número sequer ensaiado. os pensamentos do mestre eram um só turbilhão: com aquela performance nunca antes arriscada quem sabe nos próximos dias a normalidade voltaria a reinar no circo. a borboleta da tarde voltou à cena: voava nos pensamentos da bailarina, que seguiu seu equilíbrio interior e, quase sem perceber, cumpriu o percurso desprotegido entre os mastros principais. arriscou-se em horizonte abissal, pois só via a rota vertical da borboleta. desceu em meio aos aplausos. a euforia desproporcionalmente maior do que o número de presentes serviu de manto à sua passagem de volta aos bastidores do circo. o mestre não pode interferir, uma vez que o andamento da ação foi melhor do que esperava. o escuro da noite foi seu cúmplice no último espetáculo de sua vida circense. em sua curta história, mais uma vez a fuga era caminho. ao final de cinco quarteirões a luz de um letreiro iluminou sua figura. bateu à porta de um antigo e ainda elegante teatro e foi recebida por um senhor. gravata borboleta, suspensórios e um sim como resposta. Anabele: primeira bailarina e professora do balé escola do Theatro d’ Aramis que, àquela manhã, havia enterrado sua grande mestra: Anaelis...


28/02/2012


[Andréa do Nascimento Mascarenhas Silva]


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(1) FONTE DA FOTO - http://meme.yahoo.com/tina20/p/zGxmcaG/

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