sexta-feira, 6 de março de 2015

[amarelo cais]


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Por trás da tela, pingos de mar e pétala...


(Não posso mais com protocolos. Saibas que era pra ser uma carta. Vão aqui, apenas, palavras sobre um papel. Peço que entendas).


Parte-se verdadeiramente de navio. Lição aprendida há mais de quinhentos anos.

Deixa-se para trás não menos do que uma paisagem pintada em aquarela. Tons pastel e pinceladas abstratas em vã tentativa de alguma significação. Estampa-se no olhar uma tal serenidade, não sei. Quem sabe por quase não ter ido. Quem sabe por não ter ficado.

Mar se confunde com as tintas desbotadas desta cena. Irremediavelmente cinzento como a madrugada fria.

Pés em perfeita calmaria amaciam as tábuas areadas da embarcação. Dança ritmada pelo ondear das águas balouçantes. Assim corre um tempo que se quer preso sob os passos.

Adeus domado em ânsia de desespero. Parece contraditório tal sentimento, não fosse uma partida apenas pressentida.

Uma assinatura artística somente não basta à frente de uma tela. Um código decifrado em duas das laterais e no verso confere tom único ao artista e à obra. Quatro provas de uma verdade.

Uma testemunha ou pessoa perseguida, quando há risco de dano irreversível ou digno de causar morte, pode mudar de face e identidade, mas não se tatuará na pele a mudança ou os rastros da antiga personalidade. Somente saberão a verdade sobre uma transformação desta natureza alguns antigos conhecidos, o sistema que a autorizou e a própria pessoa. Registros alheios. Guardados de arquivos fadados ao esquecimento.

Verdades são sempre perseguidas. Deixam pegadas de desconfiança.

Na cabine do navio descansa o quadro que pinto desde que me lembro. Divido a vida com cores pastosas que saem preguiçosas das bisnagas, cada uma amassada de forma diferente, à custa da labuta com tons e matizes, diuturnamente.

Quadro inacabado, companheiro desse adeus autorizado. Pinto a espuma que vejo se formar nas águas e já não faço distinção entre o que vejo e pinto. São meus olhos marejados que me traem. Não planto o grão em que me fio. Só acredito. Só, acredito.

Choro um adeus sem certeza, o mesmo que salga as tintas da paleta desse dia: azul violado, ocre entristecido, branco pálido.indeciso.

Cena incompleta, indubitavelmente mal vivida ao calor do instante. Sensação de escapismo, de inutilidade. Quando as mãos, sem nós, não conseguem reter sentimento algum, só há espaço para atmosfera rasa, de futuro abissal.

Doi (não só no peito) insight velho, incapaz de passar despercebido quando trajado de alerta.

Teimo com cada pincel que me sabota lembranças. Sou da hora que invento e já não sei quem sou ou pinto.

Escorre da tela, em diagonal mal acabada, traço que me alheia do passado. Construo o presente com esboço quase supra.real.

Teus olhos. Limites pertinentes a me contar segredos que são nossos. Contrario tua vontade com cores proibidas e lanço à tela nossa sentença. Pode ser fatídico o resultado dessa audácia. Não controlo meus impulsos genuínos.

Sei que embaralho arte em vida, mar e tintas. Talvez venha a culpar cada maré voluntariosa. Desaprumam meus tantos instintos. Confundo ou misturo o que vivemos com o que acredito prender sob pinceladas violentas.

Se há um legado, tenho um testamento colorido e quem sabe um mísero beneficiário.
Ainda ao balanço do barco, verde marulhar me acorda. Não sei se estou sobre o mar ou se fiquei só, rodeada por teu adeus.

À enseada resta-me o cais amarelo, o único que me espera. Veste-se de primavera e prima.colores recém-nascidas. Sempre à flor do dia desabrocham rosas nunca vistas. Disfarçam-se ao longo das horas, apenas. Eu e o cais tramamos um desfile de lírios pobres, posto que é dia. A noite chega com sua riqueza de aromas amadurecidos em longa invernada. Nem assim me assusta o relógio que teima em me guiar. A palavra saudade se tinge em minhas retinas.

Posso ver ainda tua silhueta recortada em sombras. Ou eram os vapores da madrugada que a todo custo te envolviam? Prefiro acreditar na neblina que agora se cola, ousada, à tela que me acompanha. Quem sabe não me ajude a disfarçar os contornos da saudade para sempre colados a meus infinitos pinceis.

Teu rosto jaz perdido no cheiro de rosa novo que invade esta lembrança. Sei que te quero em nitidez de sentidos, mas aceito esta derrota irremediável. Perco tuas feições porque preciso me conformar com outros ganhos. Nunca poderei aqui assinalá-los por completo. Resta-me, em doce ironia, a incompletude perene de não saber se partistes também ou te deixastes retratar, tão vaga e abstratamente, nesta tela que agora me ampara mais do que nunca. Sei que tua partida se faz ausência, ato que fica e me acompanha. Perco-me neste longe.perto. Vou contigo e fico onde não sei.

Esqueço o navio chamado verdade. Pode me levar pra onde navega tua vontade. Pode me contar, sem mentir, no que consiste a saudade em face da presença. Pode omitir ou camuflar a cor da dor que se m’incorpora, invisível. Pode..., sim, pode tornar eterno esse oceano de sensações que me banha enquanto ainda sou senhora do sentir.lembrar. Sou talvez menos do que uma centelha de cor perdida no tecido desse mar chamado adeus. Talvez haja um peixe que atenda pelo nome de ‘até breve’.

Parte quem fica. Parte-se.


Andréa do Nascimento Mascarenhas Silva


FONTE DA PUBLICAÇÃO:  http://editorapapel.blogspot.com.br/2015/02/amarelo-cais-concurso-literario-papel.html


1) FONTE DA IMAGEM: https://npianegonda.files.wordpress.com/2009/12/amarelos.jpg